Simetria horária

Raquel Carvalho
3 min readAug 21, 2021

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Estou decidida, vou começar a fazer isso. Deixe-me aprumar a coluna e levantar o queixo, porque ninguém há de me impedir. Para registros externos futuros, ou quem sabe até mesmo póstumos, apresento o cruzamento da fronteira não-feito/feito. Visto que é claramente uma empreitada fadada ao sucesso, preciso garantir que a minha jornada seja de domínio público e também que se faça sem embaraços ou dualidades. Dia 21 de agosto de 2021, ponto final. Melhor, Rio de janeiro, 21 de agosto de 2021. Exatamente às 10:47 da manhã.

A pior combinação existente de números: 1,0, 4 e 7. Impossível dar o primeiro passo acompanhada dessa horrorosa salada. São números tão diferentes que bem poderiam ser inimigos! Isso sem mencionar que dificultam a matemática e que, com certeza, se eu narrar para alguém que estive em atividade entre às 10:47 e às 17:00, serei questionada. Interrogada. Empurrada contra parede. Afinal, quem inicia qualquer coisa à hora e 47 minutos? Se tivesse algum respeito pelo pacto mundial do tempo deveria esperar ao menos 3 minutos para iniciar à hora e 50. A bem da verdade, que o ideal seria esperar até a hora cheia.

E como se todos esses argumentos não bastassem, há que se pensar na repetibilidade, se eu quero pensar a longo prazo. Hoje eu me comprometo por 6 horas e 13 minutos, e amanhã? Repito essa aberração pelo bem da consistência? Imagine o trabalho que será espreitar o relógio para manter esses 13 minutos, sempre iguais todos os dias. Não, não senhor, pode parecer que estou dificultando agora, mas você verá que estou na verdade poupando tempo. Não preciso me alongar, mas se eu ouvisse um pessoa dizer 6 horas e 13 minutos pensaria que ela está mentindo. Ser chamada de mentirosa, isso eu não posso aceitar. Eu vou esperar até às 11 horas. Sinto a urgência de começar agora, mas estou de mão atadas pela defesa da verossimilhança .

Me sinto privilegiada, que graça divina é ter o dom do planejamento! Já estou antevendo todos os possíveis imprevistos, ainda que por definição isso pareça contraditório. Mas é assim que funcionam os sistemas hiper eficientes, a língua portuguesa se curva a eles. A cada minuto ganho mais confiança e estou certa de que se eu enumerar as minhas atividades avançarei graciosamente pelo caminho, sempre um passo a frente de qualquer força que tente se opor a mim. Então, das 11h às 12h reservarei para a organização do planejamento horário. Das 12h às 13h preciso almoçar, não quero ser rudemente interrompida mais um vez por algo tão banal como a fome. Mais um problema resolvido antes mesmo de acontecer.

11:20. A organização horária tomou menos tempo do que eu imaginava, estou economizando tempo, otimizando-o. Minha eficiência na primeira atividade me dá ainda mais certeza de que estou no caminho certo, de maneira que vou usar esses 45 minutos restantes para descansar. Às 13 horas eu estarei alimentada e descansada, 100% apta. Vê, a organização já rende diversos frutos. Não somente sistematizei, de maneira quase militar, horários e estratégias de fuga de gatilhos desviantes, mas estou construindo uma base psicológica de obstinação. Todos esses acontecimentos, ainda que tangentes, escancaram o meu comprometimento através de pactos pessoais, registrados em planilha. Uma base de solo resistente para fincar minha bandeira, já que todo mundo sabe que a maneira como iniciamos as coisas é que dita seu andamento. Fadada ao sucesso, sim senhor, como um castelo de cartas que foi construído, logo após a minuciosa organização das cartas por cores, nipes e valores. Impossível construir um castelo de outra maneira.

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